Numa floresta particularmente linda e de aroma doce, onde cada uma das flores parecem sorrir cores distintas e quase sempre maravilhosas, vive um cantante orvalho à tardinha; lá, bem no meio dela, por entre as árvores e gramíneas encantadas, atravessavam as copas e tocavam as folhas secas no chão, os finos e fulgurantes raios de sol. Misturado a tudo isso, vive uma recatada e bela criatura; uma uirapuru negra, dessas que emudecem toda uma mata somente com a voz e que todos os dias abre seus pequeninos olhos ébano, arregala o bico dormente pela noite, arrepiando-se matinalmente.
Ela – muito zelosa – mantinha sua vida formalmente encaixada numa dura rotina, que se resumia basicamente em: cuidar de seu ninho! Um lindo e frágil colocado de gravetos, escondido na mais esguia figueira da região. Cada gravetinho parecia descansar meticulosamente em seu exato lugar, fornecendo ao ninho da ave uma aparência concisa e serena.
A passarinha amava tanto sua casa! De tudo ela fazia, para mantê-la condizente, com sua própria vida e caráter. Todas as manhãs saía atroz numa aflita busca por um graveto novo, substituto de um outro qualquer, que segundo seu julgamento tornar-se-ia demasiado desconfortável. Levava horas neste vôo seletivo, e, vesperal, voltava com a mais pomposa vareta localizada nesta mais recente missão. Assaz confortável agora ela dormia satisfeita em seu reformado bem amado – seu belo ninho.
Longe dali, num outro tipo de selva, mais geométrica e cruel; cinza e triste chorava a pequena Luciana. Melancólicas aflições. Infelizmente seus ‘porquês’ tornaram-se incontáveis, e, por natureza, inefáveis, tanto que tantas cacotanasias afligiam-lhe a alma. Sua vida similava-se em coisas com a da obstinada uirapuru. Quando dormia, abria os olhos cor de mel – assim como seus curtos e lisos cabelos –, arregalava a boca num largo bocejo – simulando pedir uma pausa nas coisas – e arrepiava-se de medo, ao lembrar do mundo que a esperava lá fora.
Mesmo obnubilada, a força não fugia-lhe às pernas. Depois de engolir seu forte desjejum com pão, saía de casa lutando contra todos os olhos hostis habitantes da cidade, entre buzinas, ratos, vendedores ambulantes, mais de mil pernas, a mil por hora, em mil direções, numerosas crianças famintas e cruéis, disputando atenção com exorbitantes prédios, exibidores de suas ‘tatoos’ comerciais, entre bêbados, bélicos e bestas. Batidas no cruzamento das avenidas itinerário da menina, já é de praxe! E seu frágil coração quase pára junto ao extenso trânsito da capital.
Depois de tanto, voltava para o seu quarto – que divergia-se em muito com o da passarinha - e tomava um delongado banho, como se fosse ele capaz de lavar-lhe a mente, como se ele tivesse certas capacidades que lhe faltavam. Fugazmente, um momento de pane instalou em seus pequeninos olhos, uma cegueira da vida. Tal enorme e ascendente vontade de nada se abriu bem no meio de seu ser, fazendo-a ceder a desesperados bocejos feios, rasgando seu amassado e lúgubre rosto. Antes de dormir, deitada de soslaio, liberava os pensamentos sobre a cama, deixando-os livres para sonhar.
Lá, Luciana tentava, em vão, sair da cama, enquanto a vitrola cuspia desgarradamente Nicanor num som abafado e muito alto; uma estranha sensação no corpo inteiro formigava-lhe quente. O pé-direito de sua casa, agora possuía metade do tamanho que parecia; ou teria ela dobrado de tamanho? Não sabia, e isso já lhe era estranho. A medida em que o tempo corria, ficava ele no mesmo lugar. Voando baixo, a menina dançava sozinha pelo espaço. Uma gargalhada fresca tomava forma a cada novo segundo mais intensamente em sua boca, enchendo seu peito de uma atípica felicidade. Sabendo que era sonho, Lú, aproveitando, sonhava, abandonando-se de preocupações ou júbilos.
Numa fração atemporal de segundo, um estampido seco e rápido cortou-lhe os devaneios, fazendo com que ela flexionasse-se como um raio, e abrisse os cansados olhos, mostrando novamente seu escuro e mesmo quarto. Ainda confusa, pula da cama, pára de pé, confere o pé-direito e aciona o interruptor, fazendo com que uma fotofóbica luz inundasse tudo. Rodopiando os olhos aflitos, depois de alguns minutos, a menina localiza o foco do estorvo. Uma pequena rachadura no vidro de sua janela que separa lá fora, de lá de dentro. Analisando meticulosamente a vidraça a pouco partida, mesmo sem saber o que se deu, na pequena esperança de abri-la e encontrar uma sinfônica serenata de amor, ministrada pelo seu nobre prince charming, ela agarra a maçaneta com coragem e rompe-a para dentro, verificando assim, o exterior de sua morada.
Depois de feito o interstício, Lú choca-se com o que vê. No lugar de seu pretendente vive na realidade um inconsciente corpo largado, bem ali na sua frente, no parapeito do 7º andar. É um pássaro preto - que ela em sua simplicidade não reconheceu como sendo um uirapuru. Quase sem pensar, mais do que depressa e na mais fina cautela, ela recolhe com suas trêmulas mãos a carcaça imóvel do animal, levando-o para dentro de seu quarto. Meio sem jeito corre até sua confusa escrivaninha e com uma das mãos livre, afasta livros, copos, cinzeiro e um Quixote de madeira, dando lugar a um tipo de clareira. E no instante de acender o abajur de estudos fixado no móvel, girando o botão prateado e desencapado, toma um choque curto e incômodo que percorre todo seu corpo. Ao passo em que enchia a boca com um oblongo e escatológico palavrão, em sua outra mão, o pássaro inerte deixava escapar um tímido e inaudível espirro.
Estava vivo! – concluira. A garota, a muito, não sorria tão despudoradamente. Alegrou-se por inteiro e descansou o machucado animal no espaço recém criado em sua mesa de leitura. Debaixo do redondo foco luminoso, quase acomodada, a criaturinha mexia-se recatada; com asas e bico abertos, deslizava de leve a pequenina cabeça de um lado para o outro, lembrando o movimento de um crisântemo à brisa noturna. Submersa de uma estranha inquietação, a menina não sabia o que fazer. E então, copiando a mãe, soprou suavemente o rosto envolto de dor do pequeno ovíparo, como se aquela bufada tivesse capacidades. Insistiu por alguns minutos neste materno ritual, e, assim, pode comprovar a competência de seus atos, conquistando por fim a calma da ave, que cairia num profundo e duradouro sono instantes depois...
Muitos dias se passaram desde o momento em que a passarinha começou a dormir, neste tempo, a menina Luciana tratou muito bem de sua nova amizade. Quase vivia exclusivamente para proteger a uirapuru. Enfrentava a cidade pensando nela, trabalhava pensando nela e em casa existia por ela. Ao lado de sua cama, amontoou um punhado de retalhos felpudos dentro de uma caixa vazia - que antes abrigava maçãs - e fez de lá a ‘afagante’ nova morada do animal. Alimentando-a durante o sono com sucos de fruta postos numa seringa, abria as janelas, permitindo que os raios de sol finalmente conhecessem seu quarto, e, por conseqüência, cuidassem da passarinha que dormia, dormia. Muito tempo se passou.
Até que um dia, mesmo o escuro e chuvoso dia, não serviu de prenúncio para o que a menina presenciaria. Chegando em casa, carregada de um tanto de sacolas, cheias de rações, embornais e um exemplar de Reconheça os pássaros, de Forkland Andrade, consternada Luciana constatara. A passarinha havia ido embora! Não era possível! Revirou o ninho que construíra, levantou tapetes, travesseiros, cadernos, desfez guarda-roupas e nada encontrou. O que acontecera? O que ela deixara faltar ou fizera de errado? Seria sua culpa? A noite corria com tantas outras questões afogando seu peito, que fraco, caía junto às lágrimas. Naquela noite seria impossível sonhar.
Completamente inebriada pela dor e num sobre-humano esforço, Luciana continuava sua estreita caminhada pelo tempo; e nem por um décimo de instante, os momentos alegres ao lado de sua amiga, desgrudavam de seu pensamento. Dobrava-se feito papel para manter-se de pé, e de minuto em minuto, flagelava seu coração compulsivamente, numa incessante e grossa culpa. A menina voltara para sua fatídica rotina, e, todas as noites, sinceramente, chorava.
Dos costumes recentemente apresentados a ela, o único que preservara, foi o de manter as janelas sempre abertas, fazendo destas, braços receptivos. Como já acontecera uma feita, cogitava a possibilidade de uma recorrência; esperava que num dia qualquer, a felicidade utilizasse novamente suas vidraças como porta de entrada.
Esperou, esperou, esperou; até a sorte numa noite lhe sorrir.
Estava em sonho, quando sentiu uma fina fisgada em um único fio de seu cabelo. Retornou à consciência, alarmada conferiu o pé-direito, acionou o interruptor e girou - por sob as pálpebras - os olhos lacrimejados, numa vívida busca. Se deu, que, uma plácida imagem arrombou-lhe a retina. De pé, no gradil enferrujado de uma das janelas, forte e frágil como uma pena, sorria a pequena passarinha; carregando no bico um único e belo fino fio mel da lisa cabeleira da menina, que finalmente soube; a ave estava curada! E como a muito não fazia, permitiu que seu peito se abrisse numa florida gargalhada. Antes de partir, a uirapuru, com uma das patas segurou transversal o fio, tornando livre sua voz; e num canto esperançoso e vertical, silenciou toda a cidade.
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A multidão se calou
Luciana finalmente conhecera a felicidade. Teus efeitos em sua vida foram simplesmente únicos. Seus olhos não careciam mais de tristeza; sabia que o que tinha feito, fora belo e redentor. Assim como não seria necessário, saltar do 7º andar atrás da passarinha, seguido-a e constatando que, agora, uma parte dela, fazia parte desta. Sabia, que longe dali, num outro tipo de selva, sorria a negra ave, assaz confortável, em seu recém-reformado bem amado – um belo ninho.
Hoje, ao invés de lágrimas, existem em seu rosto simplesmente:
Uma folia de sorrisos e uma permanente vontade de tudo.
Um comentário:
Nem chuto qual primo seria... Muito linda a história da Lú com a passarinha.Onde andará Nicanor? Amo e tenho saudade!
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